Portugal rende ótimas histórias... de portugueses, claro! Se soubessem cada coisa que nós ouvimos por lá.... de um garçom: "como se diz pizza em inglês?", da mulher de um mecânico: "o que houve com o carro? Ele não anda ou não quer andar?". Mas os portugueses, no geral, são simpáticos e conservam uma certa inocência, que aqui no Brasil foi substituída pelo nosso famoso "jeitinho". Passamos por diversos vilarejos com suas casinhas brancas, centenas de igrejas, milhares de azulejos azuis... a arquitetura do país não muda, mas é linda, singela e inspiradora. E simplicidade é tudo!!!! É de encher os olhos! Porto é singular pelos seus casarios e cortiços tombados, suas ruelas em desníveis, escadarias e labirintos. Dormimos na beira do Rio Douro olhando as luzes das caves! Porto é parada no tempo, com seus letreiros antigos e maravilhosos! Um pouquinho da nossa casa brasileira.
ROUBADA NA ESTRADA
Do Porto seguimos para Supertubos, no litoral do Peniche. O mar estava super gelado e não tinha nada de ondas. Tentamos entrar no camping municipal para tomar um banho, mas fomos barrados na portaria. Que vergonha. E o pior, a ducha quente custava apenas 60 centavos de euro. Tive que deixar minha carteira de identidade italiana na secretaria para poder usar o banheiro. Meu passaporte brasileiro já estava com o visto vencido (portanto o único documento que me permitia andar legalmente pela europa era a minha identidade!!!). Do Peniche partimos para Lisboa. Fizemos o que todo turista faz: fomos a Belém comer pastel e, depois, passeamos pelo centro. O elevador não estava funcionando e ficamos subindo e descendo o bairro alto a pé. Acho que era um sábado, as ruas estavam lotadas e a noite fervendo. Ficamos horas ouvindo um cantor de fado que se apresentava numa esquina vazia e mal iluminada. Foi uma das noites mais legais da viagem. Se não fosse por um motivo terrível. Lá pelas tantas da madrugada, depois de beber não sei quantas garrafas de cerveja no gargalo e caminhar muito, me dei conta de que havia esquecido minha identidade no camping. Lá no Peniche. Lá em Supertubos. Há duas horas de distância de Lisboa. Decidimos voltar. Orientados por um taxista português pegamos uma estrada errada, que nos levou para o interior do país, na direção da Espanha. Duas horas haviam se passado e nenhum placa apontando para Supertubos aparecia na estrada. O Shay parou o carro para olhar o mapa, porque na escuridão da noite eu já não entendia mais as letrinhas pequenas que se embaralhavam à minha frente.... Ele ficou p... da vida!!! Agora precisávamos voltar 4 horas!!!!!! Pegamos uma auto-estrada super veloz e perigosa para o nosso carro-casa, que não podia passar dos 90km/h afim de não se desmanchar. Quando a coisa ficou estressante demais, com caminhões nos dando um bafo na orelha, resolvemos sair para uma estrada secundária. Saímos e o carro sentou. Não houve jeito de levantá-lo. Havíamos quebrado a suspensão traseira numa região deserta de Portugal. Pra falar a verdade, a gente não tinha a mínima idéia de onde estávamos. Também não tinhamos celular para pedir socorro. Estacionamos no acostamento e dormimos ali mesmo. Morrendo de medo, é claro. Em volta, não tinha nada, casas, pessoas, carros... apenas uns galpões abandonados e fábricas fechadas. Assim que amanheceu, o Shay (que não pronunciara uma só palavra desde a tragédia da noite anterior) pegou uma carona e foi em busca de uma mecânica. Eu fiquei abandonada no meio da estrada. Em seguida ele voltou para levar o carro para uma mecânica perto dali. Chegando lá, a mulher do mecânico veio me perguntar: "o que houve com o carro? ele não anda ou não quer andar?" Hélllouuuuuuu!!!! Depois dessa e do marido dela tentar "encaixar" um eixo da suspensão no outro, fomos embora correndo. Conseguimos chamar um guincho e levar para uma mecânica de verdade em Bombarral (alguém conhece?). Passamos o dia inteiro nesta "imensa" cidade, esperando o conserto do carro, que não foi fácil. Naquela região de Portugal só existia uma ferramenta que trocava a peça. Ela teve que vir de outra cidade e isso levou horas. Mas, 150 euros depois, nossa casa estava pronta para andar novamente. Chegamos finalmente em Supertubos para a minha alegria, pois pude tomar outro banho quentinho!!!! De lá, com a minha identidade bem guardada, seguimos direto para o sul, passamos por aquelas praias bonitas, Sines, Sagres... e partimos para a Espanha! Oléee!
ANDALUZIA
No caminho até Sevilla, dormimos numa praia. De repente, nosso carro começa a balançar no meio da madrugada e a sensação era de que alguém estava tentando quebrar o vidro ou abrir a porta. Que meeeeedo! O Shay, meio acordado-meio dormindo, puxou a cortina e soltou um "que passa?" bem tranquilo, enquanto eu já estava desesperada. Era um guri podre de bêbado que estava tentando subir no capô do carro para dançar, como se estivesse num queijinho de boate... Voltamos a dormir. Em toda a Andaluzia, as estradas são rodeadas de plantações de oliveiras. A perder de vista! É incrível a quantidade de árvores plantadas em fila e que seguem pelos campos, morros e montanhas até sumirem no horizonte. Passamos o dia em Sevilla. E caímos numa roubada. Depois da multa em Amsterdam por não pagar parquímetro no domingo (!!!), o Shay ficou meio paranóico com essa história de estacionamento. Ele não quis deixar o carro na rua, em Sevilla, e lá fomos nós para um estacionamento privado. No fim do dia, nossa conta já estava em mais de 20 euros!!!! Mas a gente se divertiu. Comemos uns tapas e bebemos uma cerveja beem gelada e de graça num bar supertradicional, fomos no Alcazar e numa agência de viagens perguntar se ir para o Marrocos por conta própria era seguro. Lógico que a vendedora disse que não. Também sofremos um ataque de moscas quando fizemos um pique-nique numa praça.
NOS VAMOS A MARRUECOS!
Chegamos em Tarifa! Do outro lado do mar já dava para avistar o Marrocos. Quando o Shay viu aquelas luzinhas árabes piscando no horizonte, desistiu de fazer a travessia na hora. Que saco. Eu tinha dormido no carro e tomado banho gelado todos aqueles dias para poder chegar até lá e agora não ía mais?????? De noite, estacionados na praia, conhecemos um marroquino-espanhol, o Emílio, que morava num furgão. Ele nos contou muitas coisas sobre o Marrocos e disse que a gente podia ir tranquilo, pq o Shay era "un hombre fuerte e inteligente" e que inteligência era o que faltava aos marroquinos. E também aconselhou a manter a "chica rubia" sempre do lado se não quisesse que ela fosse trocada por camelos, há há há... brincadeira minha, eles não fazem mais isso. Mas o Shay tinha sim um pouco de medo que isso acontecesse.
No dia seguinte, demos uma volta pelo centrinho de Tarifa. Foi um dos lugares mais legais por onde passamos. Lá também tomamos um dos melhores banhos de mar de toda a viagem. O Shay decidiu que não iríamos para o Marrocos. Quando a gente pegou a estrada para ir embora, subimos até um mirante, de onde dava para ver direitinho Tanger no horizonte. Na hora, acho que eu fiz uma cara de decepção tão, mas tããããão imensamente grande que ele mudou de idéia. Fomos até o porto. E lá ficamos a tarde inteira tentando armar um plano "seguro" de viagem para o Marrocos. O Shay já tinha estado lá uma vez e quase se deu mal numa medina, numa loja de tapetes. Quase apanhou com outro cara de um bando de marroquinos mal encarados só porque não quiseram comprar nada. Mas, desta vez, nada iria acontecer, pois ele estava comigo e qualquer coisa eu o protegeria... há há há há! Isso também é brincadeira. Mas eu não estava com tanto medo assim. Engraçado, porque é o desconhecido, geralmente, que nos dá medo. Só que eu tenho um problema, que vem dos meus tempos de repórter, quando cobria polícia, tiroteio, invasões, perseguições de carro. Eu ADORO confusão, caos, perigo, gritaria, tumulto, essa sensação de "estar vivo" que surge num momento desses (por isso os jornalistas de guerra não conseguem fazer outra coisa a vida inteira). Bom, no fim das contas, conhecemos um casal de espanhóis que iria fazer a atravessia. A guria era super escolada em Marrocos, já tinha ido tantas vezes, que desta, já estava atravessando de mini-saia jeans, biquini e mini blusa. Sério, não acreditamos quando ela pisou no Marrocos, um país muçulmano, toda pelada. De Tanger rachamos um grand-taxi até Chefchaouen, na cordilheira do Rif.
Da estrada, conseguimos ver as montanhas pintadas pelo por-do-sol em tons de vermelho, amarelo e marrom. E tomamos mais um susto. Os motoristas em seus velhos Mercedes, o único carro que parece exisitr no Marrocos, ultrapassam sem olhar e acabam jogando os outros motoristas para fora do acostamento, onde sempre tem crianças correndo e brincando. Um horror! Não sei qual o índice de mortalidade por acidentes de trânsito no país, mas tudo indica que eles estão super acostumados a isso, até porque nosso motorista, o senhor Abdul, sempre dava uns gritinhos de diversão quando ultrapassava alguém ou quando precisava sair da estrada. Agrademos por ter deixado nosso carro em Tarifa e ter feito a travessia a pé.
Em Chaouen passamos 3 dias, a cidade é toda azul e branca, cheia de vielas, escadarias e ladeiras. Ela fica encravada entre as montanhas do Rif, onde estão as plantações de Kif, a maconha marroquina. O clima na cidade é bem tranquilo, na medina e no souq (mercado) os vendedores não ficam muito em cima, insistindo na venda. A gente tem uma liberdade maior para chegar, olhar o produto e ir embora sem comprar. O Shay pechinchou bastante e voltamos com uma mala cheia de cacarecos e presentes. Eu queria uma jóia marroquina - eles tem pulseiras lindas - mas só consegui comprar um bracelete de latão, igual aqueles que tem no Renner para vender. Pelo menos, o meu veio da África, háháháhá.
Comemos muito couscous baratinho e tomamos chá de menta feito uns loucos. Pela primeira vez na viagem, fiquei feliz porque iriamos dormir numa pensão, com banheiro e chuveiro, mas que tristeza... a água era mais gelada do que as dos chuveirinhos de praia. Até o Shay, que gosta de banho frio, reclamou. No hotel, quando preenchi a ficha para pegar a chave do quarto, escrevi no espaço da profissão: jornalista. Um tempo depois estavam todos me procurando. "Quem é a jornalista?", "Cade a jornalista?" "Uma jornalista, aquiii?"...gentilmente o dono da hospedaria me pediu para alterar a informação. Se a polícia descobrisse que tinha uma jornalista hospedada em Chefchaouen, com certeza iriam ter problemas. E eu também não queria problemas.
Voltamos para Tanger de ônibus. E que ônibus.... o tempo inteiro ele precisou vir com o capô aberto para refrigerar o motor. Dividimos nosso espaço com galinhas, trezentas malas e passageiros que nos encaravam como se fossemos de outro planeta. A gente tentava não olhar muito, mas eles também nos despertavam interesse. Seguimos a viagem de quase duas horas num diálogo silencioso. O que eu achei mais característico é o olhar deles, de todos eles.... profundo, curioso, instigante, penetrante. São olhos agudos e donos de um brilho forte, bonito. Chegando em Tanger, atravessamos de volta para o Ocidente.
SEGUINDO DON QUIXOTE
Atravessamos o meio da Espanha, na rota de Dom Quixote, passando por Granada, Toledo, Ciudad Real, Burgos, Victoria Gasteiz até chegar na costa basca novamente. Esta parte da viagem não foi muito boa. No interior espanhol faz muuuuito calor, acho que tanto quanto no deserto... Eu peguei uma insolação e fiquei uns 3 dias com febre alta.
Dormimos todas as noites em postos de gasolina na beira da estrada. Dividíamos o estacionamento com os imigrantes árabes (marroquinos e algerianos) que voltavam para suas casas européias depois das férias nos países de origem. Foi engraçado, e, ao mesmo tempo, bizarro. Eles tiravam seus tapetinhos coloridos de dentro do carro, os esticavam no chão e assim, entre véus e lenços, dormiam. Sem brincadeira, nem ofensas, mas era estranho olhar aqueles corpos estirados no chão. Não estamos acostumados a isso.
Os banhos foram precários neste trecho da viagem. Mas, como eu estava com febre, precisava de uma ducha para ajudar a baixar a temperatura. A solução foram os campings, apesar de eu ter ficado sem banho por um ou dois dias quando não encontramos um lugar que desse para usar. A solução, nessas horas, era a pia dos banheiros de postos de gasolina. A gente se aperta, mas se vira, eheheheh. Ficamos a última semana no País Basco, entre Zarautz e Hossegor, surfando.
Desde o início eu sabia que nem sempre teria um chuveiro, um banheiro, uma cama limpinha à minha espera. E acho que, por isso, a viagem foi tão legal. A gente aprende o desapego e fica mais leve, mais simples. Não é um dia sem tomar banho que vai nos matar. A gente aprende a tolerância, a superar limites, a se adaptar. E quando vê já está há dois dias sem um chuveiro - depois disso, o mau humor não aguenta. A gente aprende que é bem melhor perder as frescuras e ganha de presente o melhor lado da vida.
Um comentário:
No Porto e em Lisboa eu encontrei os "nativos" mais de bem com a vida de todas as minhas andanças pela Europa. No Porto o dono de um bar que tratou uma mendiga como se fosse da família e em Lisboa o condutor de um bonde que brincava e cumprimentava TODO MUNDO na rua.
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